O não-licenciamento de Calvin e Haroldo

Nunca leio os textos introdutórios de livros e muito menos de quadrinhos. Porém não tive como ignorar as palavras de Bill Watterson em "Os dez anos de Calvin e Haroldo" (obviamente depois de ler todas as tirinhas, hehe).

Também não tive como ignorar a opinião dele sobre o licenciamento dos seus personagens, mesmo tendo uma opinião completamente diferente a respeito. Em um mundo que gira totalmente dependente do lucro, é difícil encontrar pessoas mais apegadas aos seus ideais que ao dinheiro. Alguém que resiste à chance de ganhar milhões de dólares porque se preocupa com a sua criação e com a magia que ela criou.

Não adianta escrever o quanto admirei suas atitudes, vou transcrever logo o trecho aqui!


"(...) Como a maioria das pessoas pergunta, o que há de errado em personagens de tiras aparecerem em calendários e canecas de café? Se as pessoas querem comprar o material, por que não dá-lo a elas?

Eu tenho vários problemas com licenciamento. Primeiro de tudo, eu acredito que o licenciamento normalmente desvaloriza a criação original. Quando os personagens de quadrinhos aparecem em produtos incontáveis, o público inevitavelmente fica cheio e irritado com eles, e o apelo e valor do trabalho original são diminuídos. Nada tira o gume de um cartoon novo e inteligente como saturar o mercado com ele.

Segundo, os produtos comerciais raramente respeitam como uma tira de quadrinhos funciona. Uma tira verborrágica, de vários quadros, com conversa extensa e personalidades desenvolvidas não se condensa em uma ilustração para caneca de café sem uma grande violação do espírito da tira. As sutilezas de uma tira multidimensional são sacrificadas pelas necessidades unidimensionais do produto. O mundo de uma tira de jornal deveria ser um local especial com a sua própria lógica e vida. Eu não quero que algum estúdio de animação dê voz de um ator a Haroldo e não quero alguma companhia de cartões usando Calvin para desejar um feliz aniversário às pessoas, e eu não quero que a questão da realidade de Haroldo seja decidida por um fabricante de bonecos. Quando tudo que é divertido e mágico é transformado em algo à venda, o mundo da tira é diminuído. Calvin e Haroldo foi projetado para ser uma tira e isso é tudo que eu quero que ela seja. É o único lugar onde tudo acontece do jeito que eu pretendo.

Terceiro, como uma questão prática, o licenciamento requer uma equipe de assistentes para fazer o trabalho. O cartunista deve se tornar um capataz de fábrica, delegando responsabilidades e supervisionando a produção de coisas que ele não cria. Alguns cartunistas não se importam com isso, mas eu entrei no mundo dos cartoons para desenhar cartoons, não para comandar um império corporativo. Eu me orgulho muito do fato de que escrevo cada palavra, desenho cada linha, colorizo cada tira de domingo, e pinto cada ilustração dos livros pessoalmente. Minha tira é uma operação de baixa tecnologia, de um homem só, e eu gosto dela desse jeito. Eu acredito que é a única maneira de preservar o artesanato e manter a tira pessoal. Apesar do que alguns cartunistas dizem, aprovar o trabalho de outra pessoa não é a mesma coisa que você mesmo fazer.

Além de tudo isso, porém, repousa um assunto mais profundo: a corrupção da integridade de uma tira. Todas as tiras devem entreter, mas algumas tiras têm um ponto de vista e um objetivo sério por trás das palavras. Quando o cartunista está tentando falar honestamente e seriamente sobre a vida, então eu acredito que ele tem uma responsabilidade de pensar além de satisfazer cada carpicho e desejo do mercado. Cartunistas que pensam que eles podem ser levados a sério como artistas enquanto usam os protagonistas para venderem cuecas estão se iludindo.

O mundo de uma tira é muito mais frágil do que a maioria das pessoas percebe ou quer admitir. Personagens verossímeis são difíceis de desenvolver e fáceis de destruir. Quando um cartunista licencia seus personagens, sua voz é coptada pelas preocupações financeiras de fabricantes de brinquedo, produtores de televisão e anunciantes. O trabalho do cartunista não é mais ser um pensador original; seu trabalho é manter seus personagens lucrativos. Os personagens se tornam 'celebridades', endossando companhia e produtos, evitando controvérsia, e dizendo o que quer quer alguém os pague para dizer. Nesse ponto, a tira não tem alma. Com a sua integridade desaparecida, uma tira perde seu significado mais profundo.

Minha tira é sobre realidades particulares, a magia da imaginação, e a característica especial de certas amizades. Quem iria acreditar na inocência de um garotinho e seu tigre se eles se aproveitassem da sua popularidade para venderem badulaques de que ninguém precisa a preço exagerado? Quem iria confiar na honestidade das observações da tira quando os personagens são contratados como anunciantes? Se eu fosse minar meus próprios personagens assim, eu teria tomado o raro privilégio de ser pago para exprimir minhas próprias idéias e desistido dele para ser um vendedor comum e um ilustrador contratado. eu teria traído minha própria criação. Eu não me presto para esse tipo de cartunismo. (...)"

1 comments:

Anônimo disse...

Uma vez, na época que eu fazia parte duma religião aê e um cara ia semanalmente na minha casa me falar de bíblia e tal, ele me disse uma coisa que eu não esqueci nunca.

Ele me disse que muitas pessoas fariam pressão pra que eu (ou qualquer um) seguisse o rumo deles, e que qualquer manifestação de principios com prioridade em relação à prática comum (principalmente quando isso envolve ganhar grana) era tido como "coisa de otário". É como costumam dizer, "o mundo é dos espertos", não é esse o esquema?

O cara me disse naquele dia: "o verdadeiro homem é aquele que nada contra a maré, ao invés de se deixar levar por ela". Tá certíssimo. Meus princípios e meus ideais são aquilo que ninguém pode tirar de mim. Já dinheiro, ele na mão é vendaval.